O
jornal do Recife publicou em 1933 uma história daquelas que dá gosto ouvir.
Trata-se do filho do ex-presidente da república Afonso Pena (1906-1909) e a
Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte.
Segundo o jornal a Estrada de Ferro
Central do Rio Grande do Norte estava uma verdadeira casa de Orates[1].A
imprensa chamava-a de estrada dos trilhos de ouro, tal era o desperdício de
dinheiro nas construções.O escândalo do canal do Panamá, do petróleo nos
Estados Unidos, da Revista do Supremo Tribunal e outros do mesmo quilate,
poderiam ser mais avultados na mesma grandeza, mas não
o eram em safadeza como se verificava na EFCRGN.
Foi quando o governo mandou para lá um
filho do presidente da república Afonso Pena, era engenheiro e ainda jovem. Assumiu
o exercício e saiu, em seguida sem nada dizer a ninguém, viajando pela EFCRGN,
percorrendo todas as suas estações a examinar pessoalmente tudo o que se fazia.
Mestre Heráclio, era um pintor de profissão e “comedor de água”[2]
por esporte, estava ele pintando nesse dia um dos galpões da EFCRGN em
Ceará-Mirim, quando chegou aquele homenzinho e lhe falou:
-Pintando,
hein mestre?
Heráclio
trepado na escada, de brocha na mão, olhou para o estranho, cuspiu para o lado,
sorriu e murmurou:
-Pintando?
Eu faço que pinto...
-Como
assim?
-Isto
por aqui anda a matroca[3]. Mandaram-me
pintar isto. É um serviço que eu poderia fazer em três dias, no máximo. Pois já
estou com mais de 15 dias...
-E
por quê?
-A
roubalheira é grande.Todo mundo rouba.eu não tenho o que roubar e me vingo no
tempo.Pinto um pouquinho e dou fora.Isto tudo é uma corja!meto nojo!.
O
homenzinho puxou conversa. Mestre Heráclio desceu e veio conversar com ele. E
contou as bandalheiras que sabia. Disse nomes.Precisou fatos e datas.Declarou
quais os maiores ratos.
O
homenzinho tomava o maior interesse naquilo. Ouvia, perguntava, fazia sinais de
inteligência.
Heráclio
prosseguiu:
-
O último que saiu quase leva o cofre da companhia.dizem que chegou um novo
diretor.Esse vem seco, com certeza.É moço e quererá fazer logo a sua
independência.Agora tem uma coisa: ele é filho de Afonso Pena.Se Afonso
Pena bebesse, ele seria cachaceiro.Mas
Afonso Pena é um homem honesto bom e direito.Talvez ele puxe ao pai...Mas eu
não acredito.
O homenzinho ouviu aquilo tudo,
calmamente, despediu-se e foi embora.
Mais tarde estourou a bomba. O diretor
da EFCRGN estava na terra.E o boato acabou chegando aos ouvidos do mestre
Heráclio, que teve a grande surpresa de verificar que o figurão não era mais
que o homenzinho com quem conversara pela manhã.
Em três tempos ele acabou a pintura do
galpão, tomou o trem e regressou a Natal.No dia seguinte foi ao chefe de sua
seção e pediu demissão.
- Porque, homem?
- Estou frito! Eu não sabia quem era o
diretor da estrada, meti o pau em todo mundo e nele também.
- Mas ele não saberá disso!
-É que eu estava conversando com ele!.
E explicou o episódio. O chefe insistiu
para que Heráclio ficasse, quando veio uma ordem para ele ir envernizar os
móveis no gabinete do diretor.
-Eu não irei!.
Mas conseguiu obter licença para ir
fazer o serviço no dia seguinte, que era domingo. Entretanto foi encontrar o
próprio homenzinho a trabalhar no gabinete.Apenas cumprimentos.O diretor,
porém, não lhe falou a menor censura.
Dias depois Heráclio adoeceu e a sua
porta foi ter um portador do diretor da EFCRGN, o qual mandava indagar como ia
de saúde e perguntar se precisava de alguma coisa.
Esse diretor, efetivamente, era filho
de Afonso Pena. Herdara do pai as tradições de caráter, honestidade e honradez.
Entretanto durou pouco. Não servia.Os
homens de bem nunca prestam para coisa alguma na opinião dos que não o são.
E a estrada voltou a ser o ninho de
piratas que era anteriormente.
Fonte:
JORNAL DO RECIFE,25/03/1933, p.1.
Apêndice
Segundo
o historiador camarense Aldo Torquato um filho do ex-presidente Afonso Pena
residiu em Baixa Verde durante a construção do trecho entre Taipu e aquele
distrito cujo trecho foi inaugurado em 12/10/1910.Trata-se do engenheiro Otavio Moreira Pena.
Segundo
o mesmo historiador: “Mais dois engenheiros, também
contratantes da Estrada de Ferro, residiam no povoado, Otávio Pena, baixinho, olhos
brilhantes sob a armação de um pincenês espelhante”, filho do Presidente da
República, Afonso Pena, que havia inaugurado a Estrada de Ferro. E outro
engenheiro, Eduardo Parisot, de estatura alta, magro e cortês”. (TORQUATO,Aldo.
Baixa-Verde
Raízes da nossa história, 2009, p.175).
[1] Hospício, manicômio: "..Itaguaí
tinha finalmente uma casa de orates..." (Machado de Assis, O alienista).
[2] Na
linguagem popular se refere a pessoa que gosta de beber cachaça.
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