Esse
é um dos mais antigos relatos sobre a atividade pastoral de um missionário
capuchinho, frei Aníbal de Genova, pelo Rio Grande do Norte em 1762 e por ele
podemos ter uma noção de como era a situação da então capitania do Rio Grande
do Norte naqueles idos do século XVIII.
O cotidiano na aldeia de Mipibu
O
missionário capuchinho descreveu em seus relatórios o regime a que estavam
sujeitas as aldeias de índios do Rio Grande do Norte. De acordo com o citado capuchinho: "ao alvorecer percorriam
dois tambores o arraial despertando com seus rufos os habitantes, durava essa
tamborilagem nada menos de meia hora, depois o sacristão da matriz tocava três
Ave-Marias convocando os solteiros, grandes e pequenos de ambos os sexos ao
serviço divino. Punham-se os convocados a direita e a esquerda do corredor
central da igreja, homens de um lado e mulheres de outro. Recitavam a doutrina
cristã e findo esses exercícios começava a missa. Ao se dá a elevação o coro das
cunhãs[1]
entoava o Tantum Ergo e outros belos cantos espirituais. Finda a missa
recolhia-se o sacerdote a casa paroquial onde o capitão-mor diariamente ia ter
com ele para receber ordens para a execução do programa do dia".
A
tardinha havia nova convocação à igreja para a recitação da ladainha de Nossa
Senhora. As 20h00 horas anunciava-se o toque de recolher: os dois tambores rufavam
durante meia hora, fechava-se as portas do quadrado do arraial cujas chaves
o oficial da semana entregava ao pároco.
Um
alferes comandava a ronda com 4 soldados, verificava se havia algum ausente
indo de casa em casa, se algum faltasse devia o oficial levar ao conhecimento
do missionário.
O
antecessor de frei Aníbal havia o aconselhado que ele não deixasse de ser ríspido com
o jurisdicionados e também não demonstrasse muita afabilidade. Nos primeiros
meses da presença do capuchinho tudo lhes correra muito bem, mas como não seguiu
a risca os conselhos do confrade antecessor, teve muitos aborrecimentos.
Começaram misteriosos visitantes a lhe percorrer noturnamente a horta e o
galinheiro levando-lhe muitas coisas. Assim o Frei Aníbal viu também diminuir notavelmente o
rebanho de 180 bois e cabras pertencentes ao presbitério e apascentados pelos
columins[2].O
missionário precisou usar de muita energia para reprimir os furtos asperamente
castigando os delinquentes apanhados em flagrantes, segundo relatou o mesmo frade.
Má impressão na aldeia de São José de Mipibu
O
missionário teve má impressão do estado de cristianização dos índios de São
José de Mipibu. Segundo o relato de frei Aníbal de Genova, os índios iam a
missa mais pelo receio de penalidades do que por devoção.
Os únicos que levavam
terços as igrejas eram o capitão-mor, sua mulher e um capitão da companhia de
ordenanças. Os índios só se confessavam no tempo pascal e mesmo assim quase
esgotando o prazo para tal e ainda à força de instigações e ameaças, as
confissões eram quase todas fementidas[3].
Os
índios quando apanhados em flagrante delito de furto e que eram castigados pelo
próprio missionário, negavam, no entanto, de terem se apropriado do alheio. Outra
má impressão do frei em Mipibu foi o fato de as mulheres solteiras, as vésperas
do parto, que negavam obstinadamente de não haverem infringido o sexto
mandamento[4].
Outra
luta do missionário capuchinho era a assistência espiritual aos doentes e moribundos, “tal era a
desorganização reinante nas casas dos índios que se o chefe da família
adoecesse ficava esta casa reduzida a fome” disse frei Aníbal. Em seu relato
frei Aníbal diz também que apenas sabia um desses casos corria a levar carne e
farinha a casa dos enfermos, porém, era uma grande dificuldade convencer os
doentes tomassem remédios. Os únicos sufrágios eram os que o pároco lhes
dedicava por ocasião do enterro; nunca ocorriam aos índios mandar rezar missa
pelos seus defuntos.
Frei
Aníbal escandalizou-se pelas superstições de seus aldeados, sendo estas
indivisíveis de serem narradas. O missionário fez referência a um caso curioso em
que os índios levavam os filhos recém-nascidos a pia batismal, mas ao saírem da
igreja para casa rebatizavam os filhos dando-lhes nomes de animais, aves ou quadrúpedes.
Causou
verdadeiro espanto ao capuchinho a pratica da cozvade[5].Os
homens saltavam das redes das mulheres recém partejadas e lá passavam os dias
bebendo ovos frescos em quantidade que os amigos lhes enviavam, conversando com
o dia todo os visitantes que lhes afluíam, “chi
rederebbe cose strane, se io stesso non le avessi vedete praticare”[6],
exclamou o missionário.
Frei
Aníbal narra ainda em seu relato que em São José de Mipibu passou a fazer exercício
de paciência durante os quase 19 meses que por lá passou, de abril de 1761 a
setembro do ano seguinte.
Testemunha ocular da expulsão dos jesuítas
Frei
Aníbal foi testemunha ocular dos fatos que culminaram com a expulsão dos
jesuítas, o mesmo observou o sequestro dos bens da Companhia de Jesus, a prisão
dos padres jesuítas e seu embarque para Lisboa. O capitão general Luiz Diogo
Lobo da Silva mostrou-se muito rigoroso em executar às ordens pombalinas[7].
Frei Aníbal vigiado
Frei
Aníbal foi avisado de que o capitão-mor do Rio Grande do Norte andava tomando
informações secretas a seu respeito, na qual resolveu o frei antecipar a seus
desafetos, procedendo a um rigorosíssimo inventário do patrimônio da igreja e presbitério
em duas vias com a presença de 7 testemunhas entregando uma cópia ao
capitão-mor de Mipibu e partiu com seus dois escravos africanos.
Tanto o bispo de Pernambuco (Olinda) como o governador mostraram-se agastados com esse proceder, pelo qual dias
depois o bispo decretou que os capuchinhos das aldeias seriam substituídos por
padres seculares, a vista disso o guardião do convento dos capuchinhos do Recife
determinou que o ex-pároco de Mipibu partisse em missão pelo sertão do nordeste
onde os fiéis reclamavam a presença de
sacerdotes [...].
Em Goianinha e Nísia Floresta
Frei
Aníbal partiu de Engenho Grande em Pernambuco em direção a Goianinha distante
35 léguas[8],
sendo parado pelo caminho onde houvesse lugarejos. Em suas atividades missionárias,
segundo relato do próprio frei Aníbal de Genova, em Goianinha 2.322 pessoas receberam
o sacramento da comunhão e 1.774 na paróquia de Nossa Senhora do Ó em Papari [Atual Nísia Floresta].
Em Natal
De
Goianinha o frei se dirigiu a Natal, a qual, segundo Frei Aníbal era uma “cidade que contava pouco mais de sete mil
almas, fregueses de uma paróquia única”
Segundo frei Aníbal as altas
autoridades que haviam em Natal eram o capitão-mor da capitania, um provedor e
um tesoureiro reais. O frei Aníbal achou o porto espaçoso e bem defendido pelo
forte dos Reis Magos. A guarnição da cidade era de 160 praças distribuídas m 2
companhias.
Em
Natal o missionário capuchinho permaneceu 10 dias dos quais sempre atendendo ao
confessionário. Ao concluir a missão na capital potiguar o frei Aníbal havia
administrado o sacramento da comunhão a 5.123 natalenses. Considerando que a época a comunhão só era distribuída a adultos, eis, uma noção da demografia da capital potiguar no século XVIII.
Em São Gonçalo e Macaíba
De
Natal seguiu o Frei Aníbal a convite para São Gonçalo localizado do outro lado do rio Potengi
tendo sido hospedado pelo senhor de engenho Pedro da Nova que o fora buscar em
Natal.
Foi recebido em São Gonçalo por um distinto número de cavaleiros e
pessoas distintas dos arredores. A missão foi ali das mais frutuosas segundo o
relato do frei Aníbal. Foram dadas 974 comunhões.
De São Gonçalo se dirigiu o
missionário para Coité[9],
ali esteve por 8 dias pregando e ao encerrar sua missão em Macaíba foram dadas 562
comunhões. Joana Gomes, uma rica fazendeira viúva dos arredores pediu que fosse
feita visita ao seu engenho denominado Curral da Junta, ali o frei distribuiu 837
comunhões.
Indo ao sertão potiguar
Partiu
o frei Aníbal rumo ao sertão potiguar. Era necessário viajar com precaução
segundo o frei. Além de dois escravos africanos o frei levou consigo um mastim
para se defender das onças pintadas “abundantes naqueles desertos onde
encontravam os possantes jaguaretês farta carniças”, escreveu o frei.
O
frei Aníbal resolveu ir até Assú, distantes 80 léguas de Natal, através do
sertão e das fazendas de gado “para visitar as pobres almas dispersas naquelas
solidões, gente que nem pensava em assistir missa e sequer batizar os filhos" segundo frei Aníbal. Para realizar tal viagem era necessário a autorização do
cura de Natal, cuja jurisdição abrangia os sertões em questão, o frei então
pediu autorização para celebrar e batizar.
Depois
de percorrer “largo trato de terra absolutamente deserta” a caravana do frei
chegou a um lugar chamado Caiçara onde havia uma fazenda quase a beira mar de
propriedade de Antônio Machado e ali se hospedou, de Caiçara seguiu para Mangue
Seco.
Para
ir de Natal a Assú nesse período havia dois caminhos, um pelo litoral e outro
pelo interior, sendo este tão escasso de água que os viajantes “tinham de levar
o liquido indispensável em odres de pele de cabra”. Muita pouca mandioca se
plantava no sertão norteriograndense afirmou Frei Aníbal em seu relatório, no
entanto, a criação de caprinos e suínos era avultada, não se via gente a
mendigar e também abundava a caça sobretudo de veados e porcos monteses.
Entre
as 80 léguas que separavam Natal de Assú “não se avistava uma só igreja, sequer
uma simples capela, sacerdote algum vivia naqueles desertos” afirmou frei Aníbal.
As vezes surgia algum franciscano a fazer pregações, mas não celebrava por que
o bispo de Pernambuco havia proibido os altares portáteis.
Segundo
Frei Aníbal “aqueles pobres sertanejos nasciam e morriam sem sacramentos, nem
se enterravam em sagrado”[10],
notou o missionário que as cruzes espalhadas a beira das estradas lembravam a existência
de ossadas.
Em
Mangue Seco, escreveu o missionário capuchinho que era “terra deserta e arenosa
do litoral atlântico onde só viviam algumas famílias de criadores onde a água
era de mal paladar e semi-salgada”.
Por ali esteve o capuchinho por cerca de 14
dias onde confessou 834 pessoas tendo os mesmos recebido a comunhão "ficando
edificado com a piedade destes pobres moradores”, e ainda segundo frei Aníbal,
apesar do isolamento, eram pessoas religiosas e viviam cristãmente e eram bem instruídos
na doutrina da igreja católica.
Frei
Aníbal recebera plenos poderes de missionário apostólico e assim podia realizar
o sacramento da crisma. Ali em Mangue Seco crismou 123 pessoas “receberam a
benção papal os pobrezinhos com tantas
lágrimas que era coisa de enternecer a todos” escreveu frei Aníbal.
De
Mangue Seco partiu para Pedra Branca, ali administrou os sacramentos a 1.129,
partindo daí para a fazenda Cacimbas, do coronel Antônio da Rocha Bezerra,
grande criador e lavrador este senhor de terra, onde moravam mais de 2 mil
pessoas.
Em Cacimbas o missionário
distribuiu a comunhão a 1.453 pessoas moradores daquelas redondezas. De Cacimbas
foi para Olho d’Água onde foram distribuídas 4.421 comunhões a pessoas que ali
estiveram nas missões de frei Aníbal de Genova.
Chegando finalmente a Assú
Chegando
finalmente a Assú onde foi o missionário capuchinho recebido estrondosamente. A massa popular estava
encabeçada pelo pároco local e os homens bons, principais da vila que esperavam
a uma milha do povoado.
Esta multidão cantavam a ladainha de Nossa Senhora em
procissão. O capuchinho apeou do cavalo e entrou na vila ao repique de sinos e
explosão de morteiros, seguindo o missionário, para a igreja matriz onde entrou
ao som de órgão e ali realizou pregações. Em Assú o missionário foi ajudado por
5 sacerdotes da região que o ajudaram nas confissões.
Segundo
relatório de frei Aníbal, participaram
das missas em Assú “nada menos de 8.763 fiéis”.
Partindo para Apodi
De
Assu o missionário seguiu para Apodi distante 10 léguas. Segundo frei Aníbal de
Genova, Apodi era lugar opulento “onde havia muitas famílias de prestigio e
ricas de bens”.
Do Rio Grande do Norte o missionário capuchinho partiu em
direção a terras da Paraíba e do Ceará.
Fonte: relato publicado na revista Excelsior, 1940, p. 70.
[1] Em
algumas línguas indígenas, cunhãs se refere a mulheres jovens, adolescentes.
[2] Caboclo ainda
jovem.
[3] Que
faltou à fé dada; perjuro; falso.
[4] Não
pecar contra a castidade.
[5]
A síndrome de couvade (do francês couver, "incubar",
"chocar") é um mal que afeta alguns homens durante a gravidez de
sua mulher. Em geral, a síndrome se manifesta no homem ou pessoas bem próximas
à grávida, com a aparição dos sintomas da gravidez próprios da mulher gestante.
No âmbito da antropologia, contudo, o termo couvade (cuvád) tem outro sentido,
remetendo a um costume dos índios sul-americanos de os maridos se deitarem dias
inteiros após o parto de suas esposas.
[6] "Que haviam de se livrar das coisas estranhas se eu não os visse praticando,
tradução livre".
[7]
No Rio Grande do Norte os jesuítas foram expulsos de Extremoz e Arez.
[8]
Após a determinação do bispo de empreender missão pelo sertão o frei Aníbal
partiu do convento do Recife percorrendo vários lugares em Pernambuco. Como
nosso intento é demonstrar sua missão em terras potiguares nos omitimos dessa
parte da missão do frei Aníbal.
[9]
Primeiro nome de Macaíba.
[10] Cemitério
ou igreja.
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