quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Relato de um missionário capuchinho pelo Rio Grande do Norte no século XVIII

            Esse é um dos mais antigos relatos sobre a atividade pastoral de um missionário capuchinho, frei Aníbal de Genova, pelo Rio Grande do Norte em 1762 e por ele podemos ter uma noção de como era a situação da então capitania do Rio Grande do Norte naqueles idos do século XVIII.

O cotidiano na aldeia de Mipibu
            O missionário capuchinho descreveu em seus relatórios o regime a que estavam sujeitas as aldeias de índios do Rio Grande do Norte. De acordo com o citado capuchinho: "ao alvorecer percorriam dois tambores o arraial despertando com seus rufos os habitantes, durava essa tamborilagem nada menos de meia hora, depois o sacristão da matriz tocava três Ave-Marias convocando os solteiros, grandes e pequenos de ambos os sexos ao serviço divino. Punham-se os convocados a direita e a esquerda do corredor central da igreja, homens de um lado e mulheres de outro. Recitavam a doutrina cristã e findo esses exercícios começava a missa. Ao se dá a elevação o coro das cunhãs[1] entoava o Tantum Ergo e outros belos cantos espirituais. Finda a missa recolhia-se o sacerdote a casa paroquial onde o capitão-mor diariamente ia ter com ele para receber ordens para a execução do programa do dia".
        A tardinha havia nova convocação à igreja para a recitação da ladainha de Nossa Senhora. As 20h00 horas anunciava-se o toque de recolher: os dois tambores rufavam durante meia hora, fechava-se as portas do quadrado do arraial cujas  chaves o oficial da semana entregava ao pároco.
      Um alferes comandava a ronda com 4 soldados, verificava se havia algum ausente indo de casa em casa, se algum faltasse devia o oficial levar ao conhecimento do missionário.
       O antecessor de frei Aníbal havia o aconselhado que ele não deixasse de ser ríspido com o jurisdicionados e também não demonstrasse muita afabilidade. Nos primeiros meses da presença do capuchinho tudo lhes correra muito bem, mas como não seguiu a risca os conselhos do confrade antecessor, teve muitos aborrecimentos. 
      Começaram misteriosos visitantes a lhe percorrer noturnamente a horta e o galinheiro levando-lhe muitas coisas. Assim o Frei Aníbal viu também diminuir notavelmente o rebanho de 180 bois e cabras pertencentes ao presbitério e apascentados pelos columins[2].O missionário precisou usar de muita energia para reprimir os furtos asperamente castigando os delinquentes apanhados em flagrantes, segundo relatou o mesmo frade.

Má impressão na aldeia de São José de Mipibu
        O missionário teve má impressão do estado de cristianização dos índios de São José de Mipibu. Segundo o relato de frei Aníbal de Genova, os índios iam a missa mais pelo receio de penalidades do que por devoção. 
        Os únicos que levavam terços as igrejas eram o capitão-mor, sua mulher e um capitão da companhia de ordenanças. Os índios só se confessavam no tempo pascal e mesmo assim quase esgotando o prazo para tal e ainda à força de instigações e ameaças, as confissões eram quase todas fementidas[3].
      Os índios quando apanhados em flagrante delito de furto e que eram castigados pelo próprio missionário, negavam, no entanto, de terem se apropriado do alheio. Outra má impressão do frei em Mipibu foi o fato de as mulheres solteiras, as vésperas do parto, que negavam obstinadamente de não haverem infringido o sexto mandamento[4].
         Outra luta do missionário capuchinho era a assistência espiritual aos doentes e moribundos, “tal era a desorganização reinante nas casas dos índios que se o chefe da família adoecesse ficava esta casa reduzida a fome” disse frei Aníbal. Em seu relato frei Aníbal diz também que apenas sabia um desses casos corria a levar carne e farinha a casa dos enfermos, porém, era uma grande dificuldade convencer os doentes tomassem remédios. Os únicos sufrágios eram os que o pároco lhes dedicava por ocasião do enterro; nunca ocorriam aos índios mandar rezar missa pelos seus defuntos.
        Frei Aníbal escandalizou-se pelas superstições de seus aldeados, sendo estas indivisíveis de serem narradas. O missionário fez referência a um caso curioso em que os índios levavam os filhos recém-nascidos a pia batismal, mas ao saírem da igreja para casa rebatizavam os filhos dando-lhes nomes de animais, aves ou quadrúpedes.
       Causou verdadeiro espanto ao capuchinho a pratica da cozvade[5].Os homens saltavam das redes das mulheres recém partejadas e lá passavam os dias bebendo ovos frescos em quantidade que os amigos lhes enviavam, conversando com o dia todo os visitantes que lhes afluíam, “chi rederebbe cose strane, se io stesso non le avessi vedete praticare[6], exclamou o missionário.
      Frei Aníbal narra ainda em seu relato que em São José de Mipibu passou a fazer exercício de paciência durante os quase 19 meses que por lá passou, de abril de 1761 a setembro do ano seguinte.

Testemunha ocular da expulsão dos jesuítas
         Frei Aníbal foi testemunha ocular dos fatos que culminaram com a expulsão dos jesuítas, o mesmo observou o sequestro dos bens da Companhia de Jesus, a prisão dos padres jesuítas e seu embarque para Lisboa. O capitão general Luiz Diogo Lobo da Silva mostrou-se muito rigoroso em executar às ordens pombalinas[7].

Frei Aníbal vigiado
     Frei Aníbal foi avisado de que o capitão-mor do Rio Grande do Norte andava tomando informações secretas a seu respeito, na qual resolveu o frei antecipar a seus desafetos, procedendo a um rigorosíssimo inventário do patrimônio da igreja e presbitério em duas vias com a presença de 7 testemunhas entregando uma cópia ao capitão-mor de Mipibu e partiu com seus dois escravos africanos. 
      Tanto o bispo de Pernambuco (Olinda) como o governador mostraram-se agastados com esse proceder, pelo qual dias depois o bispo decretou que os capuchinhos das aldeias seriam substituídos por padres seculares, a vista disso o guardião do convento dos capuchinhos do Recife determinou que o ex-pároco de Mipibu partisse em missão pelo sertão do nordeste onde  os fiéis reclamavam a presença de sacerdotes [...].

Em Goianinha e Nísia Floresta
      Frei Aníbal partiu de Engenho Grande em Pernambuco em direção a Goianinha distante 35 léguas[8], sendo parado pelo caminho onde houvesse lugarejos. Em suas atividades missionárias, segundo relato do próprio frei Aníbal de Genova, em Goianinha 2.322 pessoas receberam o sacramento da comunhão e 1.774 na paróquia de Nossa Senhora do Ó em Papari [Atual Nísia Floresta].

Em Natal
        De Goianinha o frei se dirigiu a Natal, a qual, segundo Frei Aníbal era uma “cidade que contava pouco mais de sete mil almas, fregueses de uma paróquia única”
       Segundo frei Aníbal as altas autoridades que haviam em Natal eram o capitão-mor da capitania, um provedor e um tesoureiro reais. O frei Aníbal achou o porto espaçoso e bem defendido pelo forte dos Reis Magos. A guarnição da cidade era de 160 praças distribuídas m 2 companhias.
    Em Natal o missionário capuchinho permaneceu 10 dias dos quais sempre atendendo ao confessionário. Ao concluir a missão na capital potiguar o frei Aníbal havia administrado o sacramento da comunhão a 5.123 natalenses. Considerando que a época a comunhão só era distribuída a adultos, eis, uma noção da demografia da capital potiguar no século XVIII.

Em São Gonçalo e Macaíba
       De Natal seguiu o Frei Aníbal a convite para São Gonçalo localizado do outro lado do rio Potengi tendo sido hospedado pelo senhor de engenho Pedro da Nova que o fora buscar em Natal. 
       Foi recebido em São Gonçalo por um distinto número de cavaleiros e pessoas distintas dos arredores. A missão foi ali das mais frutuosas segundo o relato do frei Aníbal. Foram dadas 974 comunhões. 
     De São Gonçalo se dirigiu o missionário para Coité[9], ali esteve por 8 dias pregando e ao encerrar sua missão em Macaíba foram dadas 562 comunhões. Joana Gomes, uma rica fazendeira viúva dos arredores pediu que fosse feita visita ao seu engenho denominado Curral da Junta, ali o frei distribuiu 837 comunhões.
           
Indo ao sertão potiguar
    Partiu o frei Aníbal rumo ao sertão potiguar. Era necessário viajar com precaução segundo o frei. Além de dois escravos africanos o frei levou consigo um mastim para se defender das onças pintadas “abundantes naqueles desertos onde encontravam os possantes jaguaretês farta carniças”, escreveu o frei.
      O frei Aníbal resolveu ir até Assú, distantes 80 léguas de Natal, através do sertão e das fazendas de gado “para visitar as pobres almas dispersas naquelas solidões, gente que nem pensava em assistir missa e sequer batizar os filhos" segundo frei Aníbal. Para realizar tal viagem era necessário a autorização do cura de Natal, cuja jurisdição abrangia os sertões em questão, o frei então pediu autorização para celebrar e batizar.
       Depois de percorrer “largo trato de terra absolutamente deserta” a caravana do frei chegou a um lugar chamado Caiçara onde havia uma fazenda quase a beira mar de propriedade de Antônio Machado e ali se hospedou, de Caiçara seguiu para Mangue Seco.
       Para ir de Natal a Assú nesse período havia dois caminhos, um pelo litoral e outro pelo interior, sendo este tão escasso de água que os viajantes “tinham de levar o liquido indispensável em odres de pele de cabra”. Muita pouca mandioca se plantava no sertão norteriograndense afirmou Frei Aníbal em seu relatório, no entanto, a criação de caprinos e suínos era avultada, não se via gente a mendigar e também abundava a caça sobretudo de veados e porcos monteses.
      Entre as 80 léguas que separavam Natal de Assú “não se avistava uma só igreja, sequer uma simples capela, sacerdote algum vivia naqueles desertos” afirmou frei Aníbal. As vezes surgia algum franciscano a fazer pregações, mas não celebrava por que o bispo de Pernambuco havia proibido os altares portáteis.
     Segundo Frei Aníbal “aqueles pobres sertanejos nasciam e morriam sem sacramentos, nem se enterravam em sagrado”[10], notou o missionário que as cruzes espalhadas a beira das estradas lembravam a existência de ossadas.
        Em Mangue Seco, escreveu o missionário capuchinho que era “terra deserta e arenosa do litoral atlântico onde só viviam algumas famílias de criadores onde a água era de mal paladar e semi-salgada”. 
       Por ali esteve o capuchinho por cerca de 14 dias onde confessou 834 pessoas tendo os mesmos recebido a comunhão "ficando edificado com a piedade destes pobres moradores”, e ainda segundo frei Aníbal, apesar do isolamento, eram pessoas religiosas e viviam cristãmente e eram bem instruídos na doutrina da igreja católica.
     Frei Aníbal recebera plenos poderes de missionário apostólico e assim podia realizar o sacramento da crisma. Ali em Mangue Seco crismou 123 pessoas “receberam a benção papal os pobrezinhos  com tantas lágrimas que era coisa de enternecer a todos” escreveu frei Aníbal.
      De Mangue Seco partiu para Pedra Branca, ali administrou os sacramentos a 1.129, partindo daí para a fazenda Cacimbas, do coronel Antônio da Rocha Bezerra, grande criador e lavrador este senhor de terra, onde moravam mais de 2 mil pessoas.
       Em Cacimbas o missionário distribuiu a comunhão a 1.453 pessoas moradores daquelas redondezas. De Cacimbas foi para Olho d’Água onde foram distribuídas 4.421 comunhões a pessoas que ali estiveram nas missões de frei Aníbal de Genova.

Chegando finalmente a Assú
    Chegando finalmente a Assú onde foi o missionário capuchinho recebido estrondosamente. A massa popular estava encabeçada pelo pároco local e os homens bons, principais da vila que esperavam a uma milha do povoado. 
   Esta multidão cantavam a ladainha de Nossa Senhora em procissão. O capuchinho apeou do cavalo e entrou na vila ao repique de sinos e explosão de morteiros, seguindo o missionário, para a igreja matriz onde entrou ao som de órgão e ali realizou pregações. Em Assú o missionário foi ajudado por 5 sacerdotes da região que o ajudaram nas confissões.
     Segundo relatório de frei Aníbal, participaram das missas em Assú “nada menos de 8.763 fiéis”.

Partindo para Apodi
     De Assu o missionário seguiu para Apodi distante 10 léguas. Segundo frei Aníbal de Genova, Apodi era lugar opulento “onde havia muitas famílias de prestigio e ricas de bens”. 
       Do Rio Grande do Norte o missionário capuchinho partiu em direção a terras da Paraíba e do Ceará.

Fonte: relato publicado na revista Excelsior, 1940, p. 70.




[1] Em algumas línguas indígenas, cunhãs se refere a mulheres jovens, adolescentes.

[2] Caboclo ainda jovem.

[3] Que faltou à fé dada; perjuro; falso.

[4] Não pecar contra a castidade.

[5] A síndrome de couvade (do francês couver, "incubar", "chocar") é um mal que afeta alguns homens durante a gravidez de sua mulher. Em geral, a síndrome se manifesta no homem ou pessoas bem próximas à grávida, com a aparição dos sintomas da gravidez próprios da mulher gestante. No âmbito da antropologia, contudo, o termo couvade (cuvád) tem outro sentido, remetendo a um costume dos índios sul-americanos de os maridos se deitarem dias inteiros após o parto de suas esposas.

[6] "Que haviam de se livrar das coisas estranhas se eu não os visse praticando, tradução livre".

[7] No Rio Grande do Norte os jesuítas foram expulsos de Extremoz e Arez.

[8] Após a determinação do bispo de empreender missão pelo sertão o frei Aníbal partiu do convento do Recife percorrendo vários lugares em Pernambuco. Como nosso intento é demonstrar sua missão em terras potiguares nos omitimos dessa parte da missão do frei Aníbal.

[9] Primeiro nome de Macaíba.

[10] Cemitério ou igreja.

Nenhum comentário:

Postar um comentário