Eis a seguir um relato
sobre a Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte extraído do livro Impressões
do Brazil no Século Vinte publicado em Londres, Inglaterra em 1913.A época a
ferrovia estava sob concessão da Companhia de Viação e Construções e era este o
titulo no livro referente a essa ferrovia.
Companhia de Viação e Construções
A lei 1.145, de 31 de dezembro de 1903, autorizou o
governo a mandar proceder aos estudos duma estrada que, partindo do ponto
mais conveniente do litoral do estado do Rio Grande do Norte, fosse ter aos
sertões desse estado, penetrasse nos da Paraíba, Pernambuco e Ceará, e aí,
ligando-se à Estrada de Ferro de Baturité, no ponto mais conveniente,
completasse em parte o plano geral de viação férrea do Norte do Brasil.
Feitos esses estudos, verificou o
governo que a linha férrea de penetração que mais convinha aos interesses
gerais era a que fosse construída em prolongamento da antiga Estrada de Ferro
de Natal e Ceará-Mirim, já então estudada, não só por ser o porto de Natal o
mais apropriado para centro de convergência da futura rede de estradas de ferro
do Rio Grande do Norte, como também por ser esse traçado o que melhores
condições técnicas apresentava, como se verificou dos estudos de reconhecimento
efetuados em diversos vales dos principais rios da região.
Pelo decreto nº 5.703 de 4 de
outubro de 1905, foram então aprovados o projeto geral da Estrada de Ferro
Central do Rio Grande do Norte e os estudos definitivos do primeiro trecho,
cuja construção foi imediatamente iniciada pelo governo - que, pouco tempo
depois, resolveu empreitar os serviços de construção, contratando também o
arrendamento do tráfego com a empresa construtora.
Em concorrência pública, foi
escolhida, em 1908, a proposta de Luiz Soares de Gouvêa, que, associado ao
engenheiro dr. João Julio de Proença, transferiu os contratos à firma Proença
& Gouvêa, que então se constituiu e da qual pouco tempo depois, em 1909, se
tornou cessionário o sócio dr. João Proença. Em 1911, organizou o dr. João
Proença a companhia de Viação e Construções, de que é incorporador e principal
acionista, e a ela transferiu os contratos de construção e arrendamento dessa
importante via férrea, assumindo a direção da companhia, no cargo de
diretor-presidente.
O ponto inicial da linha é, pois, a
cidade de Natal – capital do estado do Rio Grande do Norte – que possui o primeiro
porto do Norte do Brasil, não só pelas condições excepcionais do seu
ancoradouro, perfeitamente abrigado numa extensão de 18 quilômetros, mais ou
menos, e francamente acessível em qualquer maré a todos os navios que viajam em
costa brasileira, como também pela sua posição geográfica um dos mais próximos
da Europa, o que o tornará em futuro não mui remoto um grande centro de
movimento comercial, tendo em vista os melhoramentos que já estão em execução e
que, muito breve e com pequeno dispêndio, ficarão concluídos.
A estrada, partindo da cidade de
Natal, na margem direita do Rio Potengi, acompanha esse rio em cerca de 8
quilômetros, onde o atravessa com uma ponte metálica de 500 metros, constituída
por 10 vãos de 50 metros; passando então para a margem esquerda e logo dela se
afastando, galga em Aldeia Velha extenso tabuleiro, por onde corre até o Vilar,
alcançando aí o fertilíssimo vale do Ceará-Mirim, onde a cana-de-açúcar uma vez
plantada se perpetua.
O Rio Ceará-Mirim alaga todo o vale
em seus transbordamentos, durante a estação das chuvas, depositando detritos
vegetais que tornam exuberante a fecundidade do terreno. Este vale, com cerca
de 36 quilômetros de extensão e 3 quilômetros de largura, devido somente à
carência de transportes, até hoje possui cultura apenas num terço de sua
superfície total. Não tendo mais que 50 engenhos, a sua produção é
relativamente grande. Atualmente, os agricultores já adotaram a policultura,
convindo notar que o cultivo do arroz, ultimamente feito, tem deixado um rendimento
notável.
No município do Ceará-Mirim, cria-se
gado em grande quantidade, sendo farta a alimentação que ele aí encontra. A
cidade está edificada em terreno acidentado, mas o seu comércio é bastante
importante. Acompanhando sempre a margem direita do Rio Ceará-Mirim, a estrada
chega a Taipu, onde, além da criação de gado, são cultivados o algodão e
cereais em grande escala.
Quatro quilômetros adiante de Taipu,
a linha atravessa o Ceará-Mirim, galgando, através de várias rampas, terrenos
planos e arenosos que nos invernos são duma fertilidade prodigiosa para a
lavoura dos cereais, da mandioca e do algodão.
Daí até o quilômetro 88, onde se
encontra a florescente povoação de Baixa-Verde, o terreno é pouco acidentado,
encontrando-se pequenos morros isolados de rochas silicosas e calcárias. O
granito existe em diversos pontos em estado de decomposição. Nas proximidades
da linha, existem uma grande mina de enxofre, uma pedreira de mármore e muitas
outras de mica e cristal de rocha.
No quilômetro 98, a cerca de 10
quilômetros à esquerda da linha, existe a vila de Jardim de Angicos, em cujo
município a linha atravessa vastas e importantes fazendas de criação de gado
vacum, cavalar e lanígero. Essa cidade possui já muitos estabelecimentos
comerciais e máquinas de descaroçar algodão, sendo muito importante o seu
comércio.
Daí em diante a linha atravessa
grandes campos de capim penasco (ótima forragem para o gado e cujo poder
alimentício é comparável ao do milho em igualdade de peso), até atingir, no
quilômetro 134, o divisor de águas do Rio Ceará-Mirim e dos afluentes do Rio
Açu, onde existem grandes blocos de rocha vermelha.
À esquerda da linha, nesse ponto,
existe o morro de Cabugi, com a altitude de 600 metros, e a cidade de Lajes, de
grande importância comercial, devido ao cruzamento de duas estradas de rodagem,
de tráfego intenso. Até aí, está atualmente o tráfego da estrada de ferro, numa
extensão pouco inferior a 150 quilômetros.A construção continua ativamente em
mais algumas dezenas de quilômetros, e os estudos prosseguem até a cidade de
Milagres, no Ceará, onde chegará com cerca de 600 quilômetros, entroncando-se
na Estrada de Ferro de Baturité.
Está também em estudos o ramal de
Lajes a Macau, outro porto do Rio Grande do Norte, importantíssimo pelas
riquíssimas salinas, cuja produção é suficiente para abastecer a todos os mercados do
mundo, sendo esse elemento indispensável à vida aí o mais puro possível, pois
contém 98% de cloreto de sódio. Esse ramal deverá ter proximamente 100
quilômetros de extensão.
A linha tronco no quilômetro 300
atingirá a importante cidade de Caicó, denominada a capital desse fertilíssimo
sertão, onde a uberdade do solo é simplesmente prodigiosa, e seria tomada por
pura fantasia por aqueles a quem, desconhecedores dessas regiões, se
pretendesse demonstrá-la.
A população das zonas que serão em
breve servidas pela Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte é computada,
por dados oficiais, em 600.000 habitantes e a produção do algodão sobe a
algumas dezenas de milhares de fardos, sendo o produto da melhor qualidade e
comparado pelos entendidos ao mais bem reputado do Egito.
A indústria das peles tem tomado tal
incremento nessas regiões, que já se pode considerar como definitiva e como
elemento de expansão considerável, uma vez terminada a estrada, que virá
permitir aos criadores a pronta remessa desse produto aos pontos de embarque. A
exportação das peles, pelos portos de Natal e Mossoró, tem atingido nestes
últimos anos algarismos consideráveis, computando-se o seu valor comercial em
alguns milhares de contos de réis – e isso apesar da falta de transporte
econômico e rápido, que só se obterá após a construção da estrada. É já uma
indústria brasileira conhecida nos principais centros consumidores da Europa e
Estados Unidos, sendo o produto bem reputado e superior ao de outras
procedências.
A extração de cera de carnaúba e da
borracha de mangabeira e maniçoba são também outras indústrias que se tornarão
por certo bem importantes. Para se ter uma ideia da importância comercial da
Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte, basta considerar-se como
elementos principais de seu tráfego: o algodão, que, como foi dito, tem aí uma
produção importantíssima no sentido da exportação, e o sal, no sentido da
importação, produtos esses cujo consumo é extraordinário nas regiões centrais
do Brasil. Terá, portanto, essa estrada o seu tráfego perfeitamente
equilibrado, realizando assim o ideal das vias de transportes.
A bitola dessa estrada é de um
metro, entre faces internas dos trilhos, e as condições técnicas adotadas já em
seu prolongamento excelentes, não se permitindo curvas de raio superior a 300
metros e rampa mais forte de 0,012 m por metro. Os trilhos são de 25 quilos por
metro corrente e a largura da plataforma de 3,60 nos aterros e 4 metros nos
cortes.
As locomotivas adotadas são de 36
toneladas, ou 9 toneladas por eixo, sendo que as pontes são todas calculadas
prevendo-se para o futuro material mais pesado até 12 toneladas por eixo.
Nos trechos anteriormente
construídos, foram executadas as obras necessárias, a fim de serem unificadas
as condições técnicas atuais. A extensão atual em tráfego é ainda de cerca de
150 quilômetros, mas, dentro de 3 a 4 anos, terá essa estrada de ferro cerca de
700 quilômetros ou mais. O seu traçado é magnífico, e os elementos seguros dum
tráfego importantíssimo lhe vaticinam o tornar-se, futuramente, uma das
estradas de mais valor comercial do país.
Os trabalhos de construção e a
superintendência geral do tráfego estão confiados, desde o seu início, ao dr.
José Antônio da Costa Junior, engenheiro de grande merecimento, como
profissional habilíssimo e administrador experimentado, com longa prática de
outras empresas do país.
Fonte:
Impressões do Brazil no Século Vinte, Jas. Truscott & Filho Ltd. Londres, p.
268.1913.
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